segunda-feira, 10 de julho de 2017

Ensaio: Cruz e Souza, Baudelaire e a melancolia


       Descobri que sofro de melancolia tal qual João Cabral de Melo Neto. A palavra melancholia originária do latim é também, segundo o dicionário Aulete, uma “tristeza sem causa definida, por vezes acompanhada de uma saudade difusa”. Na literatura, muito já foi dito sobre essa saudade derramada, tanto em prosa quanto em versos, parece que tal acometimento é quase lugar comum nas histórias de amor (e de dor) que moram nos livros. Em seu texto “A melancolia na literatura, ” o escritor Moacir Scliar dialoga acerca das afinidades entre literatura e medicina e dessa análise surge a melancolia como sintoma da sociedade moderna. De acordo com Scliar:

"O começo da modernidade é uma época de enormes transformações sociais, econômicas, culturais. É a época dos descobrimentos marítimos, a época em que o comércio mundial se acelera, num prenúncio da globalização; uma época de progressos científicos, de desenvolvimento da arte, mas também de busca desenfreada de riqueza e de prazer: esta é a época em que surge a bolsa de valores e em que a sífilis se dissemina pela Europa. Época de luxo e de excessos, uma época que espíritos superiores miravam com desgosto – com melancolia. E a melancolia torna-se, na arte, um tema constante." (SCLIAR, 2009, p.6)

         A modernidade e o simbolismo são questões que aproximam o poeta catarinense Cruz e Souza do francês Charles Baudelaire, embora muitos de seus escritos sejam esteticamente marcados pelo rigor parnasiano.  Segundo Davi Arrigucci Jr. (1999) “como no caso de Baudelaire – o principal farol para os simbolistas -, o lastro de padrões técnicos conservadores não impede o avanço artístico de Cruz e Souza, que transforma a herança parnasiana, buscando outros afins. ” Arrigucci vai além e define o simbolismo como:
Algo que caminha não decerto no sentido da arte como pesquisa dos realistas e impressionistas (...), mas no da exploração da transcendência simbolista, de uma realidade nova, descoberta por imagens insólitas, (...) uma exigência interna da nova matéria que o artista tem diante dos olhos e se dá em articulação com a sondagem de esferas enigmáticas da realidade, que ampliam o campo de percepção estética e geram uma nova sensibilidade”.  (Arrigucci, 1999, pg.4)

          Isto posto, percebe-se que no poema abaixo, “Olhos do Sonho”, Cruz e Souza agoniza na incerteza simbolista, na ambivalência de olhar e ao mesmo tempo ser olhado, de um sonambulismo que revela o intervalo entre o sonho e a realidade, a vida e a morte, esse duplo que atormenta o eu lírico fazendo-o sentir-se caça, presa fácil, desses olhos estranhos que vigiam e que parecem querem impedi-lo de acordar do pesadelo da sua existência,

Certa noite soturna, solitária,
Vi uns olhos estranhos que surgiam
Do fundo horror da terra funerária
Onde as visões sonâmbulas dormiam...

         Reparo que, embora a maneira de olhar dos dois poetas seja distinta, na qual Baudelaire age como um “flâneur”, ao olhar de fora, como um observador e por sua vez, Cruz e Souza esteja inserido nesse “olhar o mundo de fora e de dentro”, o sentimento desses olhares é o mesmo: a melancolia. Tal percepção pode ser observada também na experiência de Baudelaire, cujo o olhar revela a angústia de não conseguir acordar desse pesadelo que é a modernidade, de não conseguir fazer experiência com essa nova realidade, de uma existência que também lhe fora cara. E isso pode ser visto em seu “Sonho Parisiense”,
Abrindo os olhos de chama
Vi o horror dessa mansarda,
E senti, entrando na alma,
Das lides ponta danada;

         Por essa razão que, torna-se possível, dado a sua contemporaneidade e do ofício comum a ambos, que a melancolia, esse olhar melancólico, também lhes tenha sido objeto de partilha. Para Bernd Witte (2017), o poeta francês Baudelaire "é o inventor da palavra e da coisa, la modernité." Para o poeta, modernidade seria "esta eterna volatização dos fenômenos", e ao meu ver, essa volatização, se levada ao seu significado literal, confirma o mal-estar de Baudelaire e Cruz e Souza, um pela inconstância de uma sociedade que lhe causou estranhamento e, consequentemente, falta de identificação, outro, pelas rupturas de um país pós-escravocrata e pelo preconceito racial. Uma melancolia sentida através de um eu lírico que vê, sofre, tenta compreender essa nova realidade, inserir-se nela e ao mesmo tempo negá-la, como muito bem exposto por Arrigucci Jr.:

"O moderno tem o tom da infelicidade, e o traço satânico espelhar em sua identificação do negativo e da negatividade real da situação social alijada pelo poeta de seu mundo sonhado. Nele também, por certo, está a marca pessoal atormentada, ao estilo de Cruz e Souza, capaz de incorporar a tradição, e ainda moldar de novo o drama do próprio artista com imagens inéditas, convulsas, tensionadas para uma inesperada direção, cheia de complexas implicações. ” (Arrigucci, 1999, pg.6)

          Ao ler o trecho de Arrigucci, fica impossível, para mim, não associar a obra de Baudelaire e Cruz e Souza às suas vidas dramáticas e conturbadas, fatos cujo conhecimento é comum e quase escolar. Cruz e Souza, filho dos escravos alforriados, adotado e educado no seio da família do “dono” de seus pais, teve quatro filhos, todos mortos prematuramente, mesmo sendo chamado, em sua época, de Cisne Negro, seguiu trabalhando como mão-de-obra barata em ferrovias em que acaba morrendo, aos 37 anos, de tuberculose e seu corpo transportado em um vagão destinado a transporte de gado (Domeneck, 2005). Por sua, e não menos trágica vez, Baudelaire ficou órfão de pai aos seis anos de idade, teve uma relação conturbada com o padrasto, o qual lhe enviou de barco às Índias aos 20 anos. De volta à França gastou com a vida boêmia toda herança deixada por seu pai, passando a viver até a morte em condições financeiras precárias. Passou seus últimos dias atormentado por doenças nervosas, foi vítima de uma paralisia geral e morreu nos braços de sua mãe aos 46 anos.
        Para Sigmund Freud (1915) “a melancolia pode apresentar diversas formas clínicas e seus traços mentais característicos são: desânimo profundamente penoso, pouco ou nenhum interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de atividades, além de uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminação que pode levar a uma expectativa delirante de punição. ” Cito Freud, e seu conceito fundador da melancolia como psicopatologia, para compreender mais uma vez, e por hora, última, a poesia de Cruz e Souza e Charles Baudelaire. Em grande parte de seus olhares e dizeres, os poetas tendem a um arrefecimento, a um viver pesaroso e às temáticas funestas de uma vida fragmentada e deslocada, entre caveiras que foram risos e musas loucas e doentes, onde a melancolia literária confunde-se com a patologia freudiana, assim como para Scliar (2009), medicina e literatura estreitam caminhos.




Referências bibliográficas:

Acessado em 14/06/2017: http://www.aulete.com.br/melancolia 
ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. “A noite de Cruz e Souza”. InOutros Achados e Perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.165-184. 
BAUDELAIRE, C. As flores do Mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 
CRUZ E SOUSA, João da. Cruz e Sousa: obra completa. Organização Andrade Muricy; atualização Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 
FREUD, S. (1917 [1915]). Luto e Melancolia. in Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago.
SCLIAR, Moacir. A melancolia na literatura, Cad. Bras. Saúde Mental, Vol 1, no 1, jan-abr. 2009 (CD-ROM) 

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