domingo, 5 de novembro de 2017

Cuidado, não leia! Um breve relato sobre o ensino de literatura.


É proibido ler. Talvez se a leitura nos fosse proibida (ou voltasse a ser) comeríamos livros. Comeríamos página a página de forma demorada degustando os “as” e os “bes”. Devoraríamos loucamente os machados e as clarices, depois vomitaríamos borboletas ciumentas e macabéas com finais felizes. 

Certamente existe uma razão para que eu comece meu texto assim. Já há algum tempo a falta de gosto pelos livros tem se tornado um tema recorrente no meio acadêmico e sobretudo, nas escolas de ensino básico. Face a essa realidade nasceu em mim, futura professora de literatura e uma amadora que se arrisca em invencionices literárias, o desejo de saber: Como apresentar um texto literário? Que elementos devo levar em conta na construção da apresentação desses textos? Que conceito de leitura deve estar na base da apresentação do texto literário? Como apresentar o texto, a história e a teoria? 

Para tentar desvendar esses mistérios que valem muito mais do que toda riqueza de João Romão, começo por pensar na primeira questão e arrisco compartilhar minha experiência como contadora de histórias na “Noite de Contos” do Sesc Chapecó no ano de 2017, em que tive a alegria de ser interventora. 

Minha missão, nessa ocasião, fora a de falar sobre o grande escritor brasileiro do Séc. XIX, Machado de Assis. Já havia dado aulas de literatura durante o estágio da faculdade, mas nunca tivera um desafio desse porte já que o público era completamente heterogêneo em todas as instâncias possíveis. Assim, decidi utilizar o maior número de linguagens para, com isso, ter uma chance de “acessar” o gosto pela literatura, no maior número de pessoas. Desse modo, parti de um episódio da minissérie Capitu, criada pela TV Globo, intitulada “Na varanda”, que não por acaso é o Capítulo XII do livro Dom Casmurro. Você deve estar se perguntando: mas não era uma noite de contos? Sim! Era..., mas como despertar a curiosidade dos participantes sem antes tocar em seus corações? Os contos de Machado são incríveis, mas, qual é sua obra mais conhecida? Porque não aproveitar o riquíssimo material disponível na internet para abrir as portas da percepção leitora dos que ali foram, possivelmente com tal objetivo? E foi assim. Logo no início encantaram-se com a revelação de Bentinho, descobrindo-se, pela voz do agregado da família, apaixonado por Capitu. Foram dez minutos do mais profundo silêncio e ao final, pude ouvir o mais demorado suspiro da noite, consequência do amor ali revelado, desnudado. 

Em seguida, valendo-me da emoção desperta pelas imagens, lhes apresentei o texto. Lemos juntos três capítulos da obra, “Na Varanda, Capitu e A inscrição” e, após, conversamos sobre o que lemos. Ali vieram excelentes comentários, dúvidas, críticas e posicionamentos, o que me instigou ao próximo passo: ler os contos de Machado! Assim, iniciamos a leitura do conto “A igreja do diabo” e qual não foi meu espanto ao perceber que muitos ali não sabiam que o autor fora contista, e dos bons! Finalmente lhes falei um pouco da vida do escritor e do contexto histórico da época, com o intuito de situar os leitores em relação ao tempo e espaço da narrativa ali vivida.

Quis relatar essa experiência porque a considero muito positiva e acredito ser possível trazê-la para a sala de aula em que, nesse espaço, complementaria com a produção de um texto, pelos alunos, de acordo com o gênero textual e discursivo estudados, e por fim, traçaria um paralelo entre uma metáfora que permitisse ler a obra e a teoria literária que a explicasse. Assim, penso ser razoável partir de uma imagem, ir para o texto, depois para a história e por último, para a teoria. 

Como segundo exercício de ensino de leitura, baseada nas aulas de literatura e em experiências vividas, creio que os elementos que devo levar em conta na construção da apresentação dos textos literários são a relação entre o estudante e o texto, em que o tempo do texto seja para ele o presente, uma vez que essa relação o afeta proporcionando-lhe experiências e vivências de outros mundos, de ser o outro. Ou seja, a resposta para a próxima questão a que me referi no início dessa conversa: a relação entre livro e leitor, estudante e texto. No texto “Como se lê”, Daniel Link (1959) chama essa relação de “sujeito e objeto”, nele, diz que “o sujeito lê o objeto” e o que chamamos de leitura é “apenas a correlação de duas séries de sentido, uma inerente ao objeto e outra inerente ao sujeito”. Assim, para ele, ao lermos, “o sentido, claro, desloca-se ao logo da série” em que “devemos passar da relação meramente imaginária com o texto, ao simbólico, ou seja, redenominar, cortar, escandir, pontuar de novo a sequência”. Isso significa dizer, grosso modo, que leitura é relação. 

Ora, se leitura é relação, como devemos apresentar os textos de maneira que ela, de fato, aconteça? Essa pergunta abre as portas para as respostas do último questionamento feito, sobre a sequência de apresentação de textos, seja partindo dele próprio, da história ou da teoria. Ao longo das aulas de literatura posso dizer que isso ficou muito claro e que partir do texto, será para mim, sempre que possível, o pontapé inicial. Aprecio imensamente a maneira como o escritor João Cézar de Castro Rocha (2006) traça esse percurso em seu texto Ciúme e dúvida póstuma - Dom Casmurro, de Machado de Assis, em que parte da obra, falando da força dos personagens e daquela que, para ele é a temática central da narrativa, o ciúme. Depois para o autor e sua vida, uma vez que o ciúme é tema recorrente ao longo de sua obra e por último, usa a metáfora literária do “ciúme” para explicar a teoria onde, segundo Castro Rocha, “a literatura também não dispõe de “provas”, não expõe “evidências”; como o ciúme, a literatura é um discurso que se alimenta da dúvida, da impossibilidade de conhecer a “verdade” última do mundo. ” 

Assim, a literatura é como a vida, em que só se conhece um homem, de verdade, através das coisas que ele esconde. E é esse mistério, essa lacuna entre as palavras que devemos instigar nossos alunos a querer desvendar. É estritamente proibido, proibir a imaginação!

Nenhum comentário:

Postar um comentário